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Postado por Autismo em Dia em 10/abr/2020 - 6 Comentários
Olá! Hoje trouxemos mais um texto de Francisco Paiva Júnior, nos contando um pouco de suas impressões sobre autismo e mercado de trabalho. Confira:
Fiz uma abrangente reportagem para a Revista Autismo (edição número 5, de junho de 2019) abordando este tema: o autismo no mercado de trabalho. O assunto é uma discussão que já acontece com certa frequência em países desenvolvidos, como na Europa e Estados Unidos. No Brasil o assunto tem ganhado relevância — ainda de maneira tímida, mas tem crescido. Muito aquém do desejável, sim, mas é um começo.
Naquele artigo, citei o caso de um jovem chamado Eric Rasmussen. À época, ele acabara de cursar um treinamento específico para pessoas com autismo na Specialisterne, empresa dinamarquesa que tem filial em diversos países, como Espanha e Itália, assim como aqui no Brasil. Eric havia concluído o curso e aguardava uma oportunidade de trabalho. Nesta espera, fazia trabalhos esporádicos como ator em uma peça teatral, além de dublagem — como voz da girafa Rafa, do desenho animado Pablo, produção da BBC de Londres, atualmente exibido no Netflix aqui no Brasil.
Após aquela reportagem, muita coisa aconteceu.
Pouco tempo depois, Eric foi contratado por uma empresa de auditoria e pesquisa de opinião. A contratação foi parte de um programa para atender às cotas de pessoas com deficiência na empresa e, logicamente, ter um papel inclusivo na sociedade, dando oportunidade a pessoas neurodivergentes (ou seja, que fazem parte da neurodiversidade), como autistas e indivíduos com outros transtornos neurológicos, por exemplo.
Acontece que uma mudança de paradigma estaria por vir naquela empresa. Uma transformação do conceito de empregar um autista, ou melhor, do conceito a respeito do quão benéfico poderia ser contratar uma pessoa com o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), muito além de atender à obrigação imposta pela Lei de Cotas ou de melhorar a imagem institucional da empresa.
Aos poucos, no dia a dia, Eric foi demonstrando seu valor. A assiduidade e pontualidade impecáveis começara a deixar todos ao redor impressionados. A produtividade, porém, foi o ponto forte que embasbacou o departamento todo. Eric era (e ainda o é) tão dedicado, tão focado e seguiu às diretrizes da empresa com tanta precisão, que foi o mais produtivo do departamento ao ponto de ganhar um dia de folga por tanto trabalho feito com qualidade em tão pouco tempo. Foi muito mais que ser o funcionário do mês, foi elevar a produtividade a outro patamar.
Certamente, se alguém tinha alguma dúvida (e provavelmente muitos tinham) a respeito do quão viável seria “dar uma oportunidade” a um autista na empresa, como se fosse alguma “benevolência”, esse pensamento caiu por terra. Eric o destruiu implacavelmente com suas qualidades.
Resultado: a empresa decidiu contratar mais sete autistas — desta vez não por causa de nenhuma lei, nem para uma boa imagem institucional, foi por produtividade mesmo, por reconhecer o valor de num autista no trabalho correto e bem treinado.
E a história de Eric é somente uma no meio de tantas outras. Não é incomum eu ouvir falar de casos semelhantes e do quão produtivo pode ser uma pessoa com autismo na função correta. Se puder, então, trabalhar em algo que seja parte de seu hiperfoco, de seu interesse restrito (uma das características do autismo na maioria das pessoas dentro do espectro) aí o autista “voa baixo” e não deixa chance pra ninguém. É claro que temos que considerar a autonomia da pessoa com autismo, para pensar onde e como ela poderia ser produtiva e feliz num emprego. Há ainda os empregos apoiados, em que o funcionário tem uma espécie de tutor para orientá-lo e guiá-lo, fazendo trabalhos mais simples e manuais. É preciso ter bom senso e pensar mais nas potencialidades de cada um que nas limitações. Acreditar no potencial de um autista faz toda a diferença.
Voltando ao caso do Eric, pude comprovar com meu filho Giovani (que também é autista) essas qualidades de produtividade.
Ele ainda não está em idade para trabalhar, completará 13 anos agora em abril de 2020. Mas, nas férias escolares, o levei para me ajudar no trabalho por uma semana. Ele ficou superempolgado, pois iria “trabalhar com o papai”. A novidade fez seus olhos brilharem e já enxerguei um potencial ali.
Eu moro a três quilômetros do meu trabalho. Portanto, vou a pé todo dia. Com ele não foi diferente. Fomos, eu e Giovani, no primeiro dia de “trabalho” dele, cruzando a Avenida Paulista, a pé, indiferentes ao trânsito caótico que nos circundava. Além do benefício do exercício físico de uma boa caminhada de 35 minutos, nada afetava nossa ida, nem chuva, nem trânsito, nem manifestações de protesto. Fomos batendo papo de casa até o trabalho.
Ao chegar, fui logo passando as recomendações. Lógico que, em casa, dei as minhas recomendações de pai, dizendo para ele se comportar, me obedecer mais que o normal (não posso reclamar, Giovani é muito obediente!) e portar-se da maneira mais educada possível, afinal estaríamos num ambiente de trabalho, mais formal.
Voltando às incumbências que eu daria ao Giovani, comecei a orientá-lo sobre o que ele faria naquele dia, sua responsabilidade. Lógico que não era nada complexo, muito menos comprometedor, de grande responsabilidade, mas seria sua primeira “jornada de trabalho” e ele estava levando isso muito a sério. Eu, por outro lado, via como uma “iniciação” ao mundo corporativo, saber que no trabalho temos regras rígidas e responsabilidades a cumprir.
“Giovani, sua tarefa será triturar alguns papeis que contém informações confidenciais e montar várias pastas para arquivar outros documentos”, iniciei dizendo a ele com certa formalidade até.
E detalhei o passo-a-passo do que ele faria sendo bem específico, claro e direto, como se deve fazer com autistas de um modo geral, para não haver duplo sentido e mostrar os procedimentos da maneira mais concreta e detalhada: “Você vai pegar 12 folhas de papel nesta caixa azul e vai colocar, uma por uma, no triturador. Pode colocar uma logo após a outra, mas nunca sobrepô-las. Fará isso com as 12 folhas e vai parar, pois o triturador de papel terá esquentado e precisará parar para esfriar um pouco, já que o motor dele não suporta ficar trabalhando continuamente”. Expliquei, então, o que fazer, o porquê de se fazê-lo e os motivos do que não fazer. Minuciosamente. E terminei perguntando: “Alguma dúvida até aqui?”. Ele, demonstrando interesse, mas tendo compreendido todos os detalhes, respondeu com um “não” seguro e rápido.
Continuei com a segunda parte da explicação: “Enquanto o triturador esfria, você vai montar dez pastas. Aqui estão as capas das pastas, que você monta desta forma”, mostrei a ele montando, na prática, uma pasta. “Você encaixa esta peça aqui no centro da dobra, que é o que vai segurar os plásticos. Depois pega dez plásticos como este e encaixa aqui dentro da pasta. Por fim, fecha o suporte que você encaixou e pões esta etiqueta na lateral e pronto, pasta montada”, detalhei enquanto finalizava a pasta.
Para confirmar se não haveria nenhuma dificuldade, chamei-o: “Venha cá e faça uma pasta você, assim como eu fiz esta, para vermos se há alguma dúvida ou dificuldade antes de seguirmos em frente”. Ele veio, montou, teve uma ou outra dificuldade no início por ser algo que nunca havia feito, talvez nem nunca tivesse visto uma pasta dessas montada, quanto mais o processo de construí-la. Corrigi um ou dois movimentos e a pasta estava pronta. Para ter certeza cem porcento, o convidei a montar outra, desta vez sem eu nem olhar. Ele topou. Virei de costas e comecei a preparar a minha mesa de trabalho, como se não estivesse nem aí para ele, mas com o pensamento e os ouvidos atentos, aguardando que ele finalizasse a pasta sozinho.
“Pronto, pai!”, anunciou ele com a pasta pronta na mão.
Estava pronto, não só a pasta, mas ele. Estava com todas as recomendações e instruções para o “trabalho”. E finalizei: “Então, após fazer as dez pastas, você volta ao triturador de papel e reinicia tudo de novo, pegando as doze folhas da caixa azul para triturar e vai repetindo essas mesmas tarefas até dar uma hora de trabalho. Depois disso você tem uma hora livre para desenhar e ler gibi”, encerrei, afinal esse era o nosso combinado. Ele iria lá para “trabalhar” e para se divertir alternando as tarefas durante o dia.
E ele começou. Foi impecável. Seguiu as regras à risca. Não tive que intervir uma só vez. Nada. Giovani era uma maquininha que executava as tarefas detalhadamente sem sair das recomendações que eu havia feito. Produtividade excelente. Enfim, naquele dia ele terminou as pastas e os documentos a serem triturados que planejei para uma semana. No dia ele deu conta de tudo. As pastas acabaram e a caixa azul ficou vazia. Tive de aumentar o tempo de desenho e leitura de gibi (tive até de comprar mais gibi!) e, logicamente, pensar em outras atividades para o resto da semana, pois ele superou todas as expectativas. Seguir regras é com ele.
Vi um pequeno Eric no meu Giovani. Assisti, na prática, o quão produtivo poderia ser um autista no mercado de trabalho, fazendo a tarefa certa conforme sua potencialidade, conforme suas características.
E mais, tive um ponto de comparação, pois, na semana seguinte, levei minha filha Samanta, dois anos mais nova que o Giovani, para a mesma semana de “trabalho” comigo. Samanta não tem autismo, portanto, eu teria um contraponto, uma referência comparativa.
Fiz exatamente a mesma coisa. Aliás, tento sempre fazer tudo igual para os dois, levando em conta a característica de cada um e com muito bom senso, é claro. Mas, na medida do possível, tento ser muito justo com ambos — para o bem e para o mal.
Mais pastas e plásticos foram comprados. E mais documentos a serem triturados foram gerados. Havia, sim, bem menos a fazer, talvez menos de um quarto do que havia para o Giovani na semana anterior. Mas eu já estava escolado com opções de outras tarefas, com mais gibis e atividades de lazer para passar o tempo e também para que ela tivesse experiência semelhante de “trabalhar com o papai” por uma semana.
Levei a Samanta a pé do mesmo jeito. Dei as mesmas detalhadas instruções ao chegar. Fiz a pasta de demonstração igualzinho. Deixei-a fazer uma errando um pouco (errou menos que o Giovani, pois a Samanta tem muitas habilidades manuais,e é exímia desenhista e faz maquetes para as bonecas com perfeição — uma artista nata). Corrigi e deixei-a fazer uma pasta cem porcento sozinha. Tudo seguindo aquele mesmo script de sete dias atrás.
E dei a largada. “Pode começar!”
Ela iniciou a tarefa, fez uma rodada completa de papeis triturados e de pastas e me animei. Eu tinha uma reunião por videoconferência naquela hora. Fui para a sala de reuniões e em meia hora estava terminada. Voltei para minha mesa.
Surpresa!
O que encontro? A Samanta desenhando, antes de dar uma hora de trabalho como combinado. Uma pilha de pastas sem estarem montadas. E um colega de trabalho montando a máquina de triturar papel.
“O que houve?”, perguntei abismado.
A explicação me faria colocar a Samanta de castigo por 30 minutos na sequência: “Ela pegou 12 folhas de documentos a serem triturados para colocar de uma vez no triturador. Mas ela ainda dobrou ao meio para ficar menor e triturar mais rápido, porém, as folhas todas juntas e dobradas enroscaram no triturador, que não é forte o suficiente para ‘mastigar’ uma quantidade dessas e tive de desmontá-lo, para retirar as folhas enroscadas e acabei de testar para ver se não queimou o motor, pois fez uma força danada e travou. Felizmente não queimou e está tudo funcionando, agora estou montando o equipamento de volta”, ouvi, totalmente constrangido, e fuzilei a Samanta com o olhar.
Ela já entendeu na hora e nem precisei explicar muito. “Você fica ali sentada, de castigo, por meia hora, sem desenho, nem gibi. Depois vou ver outra tarefa para você fazer, pois esta você não fará mais”, ordenei, calmamente, mas sem deixar margem para perguntas. Ela, que me conhece, e sabe que se eu digo algo levo às últimas consequências, seja a promessa de um prêmio ou a ameaça de uma punição, por isso, ela foi sem titubear. Sem reclamar, quieta, ciente de seu erro, ficou lá por meia hora. Depois achei tarefa mais condizente (e mais flexível) para ela, pois seguir regras ainda não é seu melhor dom.
Mas pude comparar meus dois filhos numa mesma tarefa. Talvez o Giovani tenha sido beneficiado, pois seguir regras é algo natural para ele, algo que até o deixar seguro, pois muitos autistas buscam a rotina, algumas vezes de forma inflexível. E aquele procedimento detalhado e cheio de regras, de quantidade e de tempo era “mamão com açúcar” para ele. Para a Samanta, nem tanto. Digamos que seguir regras não é a coisa mais fácil do mundo para ela. Mas a vida está cheia de regras e é preciso ser treinado minimamente para isso.
Mas, para finalizar — voltando ao Eric, ao Giovani e ao mercado de trabalho —, com essa simples atividade com meus filhos, puder ver concretamente, na prática, o quão eficiente e produtivo pode ser um autista no mercado de trabalho.
Agora as empresas precisam descobrir isso!
Colaborou com esse artigo: Francisco Paiva Jr., editor chefe da Revista Autismo
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Adorei! Tenho um neto com Síndrome de Asperger de dez anos.
Oi Eunice, que legal que você gostou da matéria. Um abraço de toda equipe do Autismo em Dia para você e seu netinho ?
Muito interessante! eu sou autista, diagnosticado tardiamente e nunca havia conseguido trabalhar pq tenho MT ansiedade socia, falta de concentração, e muita desregulação sensorial. aliás eu dificilmente conseguiria ler tudo isso se não fosse algo tão do meu interesse! eu estou a 5 meses numa empresa multinacional e trabalho fazendo criação de pedidos no notebook. e é muito real esse comprometimento que a gente tem com regras e nossa pontualidade e temos mesmo a necessidade do gestor ser direto e não deixar dúvidas ao explicar uma tarefa! achei muito interessante! é só achar a área que desperte interesse, juntamente com a necessidade da pessoa! e quem diria, o Matheus que queria morrer pra não ter que conviver com as pessoas, está tendo a independência e autonomia (:
💙
Olá, tudo bem? o meu marido é autista e está precisando muito de um emprego. você poderia o indicar na empresa em que trabalha?
Olá, Karine. Não fazemos indicação dessa forma. Ele pode entrar no site da Supera farma e se cadastrar no trabalhe conosco. um abraço 💙