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Postado por Autismo em Dia em 30/mar/2020 - 16 Comentários
Francisco Paiva Júnior, pai de autista, autor do livro: Autismo – Não espere, aja logo! e editor chefe da Revista Autismo, nos convida a repensar um tema delicado e complexo, porque ainda cheio de tabus. Hoje o papo é sexualidade e autismo. Fique conosco e veja como aprender mais sobre o tema:
Não é um tema fácil. Sexualidade é algo complexo para qualquer grupo de pessoas. E, se falarmos de pessoas com autismo, acrescente uma dose a mais potencializando o tema, pois o espectro é enorme e as diferenças e desafios ainda maiores.
Não sou autista. Portanto, não posso escrever sobre a minha experiência pessoal. Não posso assumir este como meu “lugar de fala” (o termo — que tem origem imprecisa, em geral apontada para os anos 1980, no debate feminista americano — significa a busca do fim da mediação: a pessoa que sofre o preconceito falar por si, como protagonista da própria luta ou movimento, por exemplo).
Sim, por um lado sou legitimamente um pai de autista. Mas, nem sequer nesta posição posso falar com qualquer autoridade, nem minimamente, pois meu filho, a completar 13 anos em abril (2020) próximo, pré-adolescente, não passou por fases de desenvolvimento suficientes para que eu conviva com o assunto e tenha alguma experiência relevante. Tampouco sou especialista na área.
Me resta, como jornalista, apontar caminhos de boas fontes de informação, de quem entende do assunto, de quem já o debateu e tem legitimidade para fazê-lo.
Um exemplo é a jornalista Fátima de Kwant, mãe de autista adulto, brasileira radicada na Holanda, que tratou do tema num artigo na edição número 6 (de setembro de 2019) da Revista Autismo, focando na transição entre a infância e a vida adulta: “Autismo, adolescência e sexualidade”, que começa com o seguinte parágrafo:
“Na adolescência, tudo muda: o corpo e a mente. O adolescente autista passa pelas mesmas mudanças, ainda que com alguma diferença. Alguns podem ter as mudanças físicas sem estarem preparados, psicologicamente, para elas. O corpo muda e as sensações podem ser amedrontadoras”,
Foi assim que ela introduziu o assunto delicado e pouco explorado a respeito do autismo. Um texto interessante com a visão de quem viu esta mudança acontecer dentro de casa. Uma bom “prefácio” para o nosso tema aqui.
Melhor ainda é ouvir pessoas com autismo debatendo o tema. Se expondo ao relatar suas experiências e, ainda mais relevante, explicando seus sentimentos, suas impressões, sua percepção sobre o tema relacionado a si mesmo e aos outros.
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Além das histórias pessoais que já ouvi — as quais não poderia aqui relatar por uma questão basicamente ética e de bom senso —, uma grande contribuição para o tema vem do podcast Introvertendo, criado pelo jornalista Tiago Abreu, que também é autista.
Vamos às explicações: se você não sabe o que é um podcast, resumo aqui: é uma espécie de programa de rádio, em áudio, publicado na internet para você ouvir sob demanda, ou seja, quando quiser, assim como estão disponíveis os filmes no Netflix, os podcasts normalmente têm uma periodicidade definida e são, em geral, publicados diária, semanal, quinzenal ou mensalmente, e você pode “assiná-los” através de um aplicativo de podcasts; assim como pode ouví-los de maneira avulsa.
Outra explicação necessária é o que é o Introvertendo é um podcast feito por autistas. O slogan deles esclarece muito: “Um podcast onde autistas conversam” — para quebrar qualquer preconceito e estigmatização de que autistas não poderiam estabelecer um diálogo, um debate. Lá, eles relatam e discutem temas do dia a dia, ligados ao autismo, além de fazerem alguns programas musicais, relacionados a algum cantor, banda ou gênero musical, conforme o interesse de cada um.
E, sobre sexualidade e afetividade, há alguns ótimos episódios a serem ouvidos e podermos saber, de quem tem “lugar de fala” para tal, tópicos relevantes a respeito do tema. Ouvi todos os episódios por completo (enquanto escrevo este texto, eles acabaram de publicar o episódio número 90) e tenho certeza de que há outras contribuições, talvez em menor quantidade — mas não com menos relevância — em episódios que não cito aqui.
Um ótimo exemplo são episódios a respeito de relacionamentos, sempre com as duas pessoas envolvidas participando do podcast e falando sobre aspectos emocionais e do dia a dia, com extrema propriedade e expondo-se, para levar a informação a um nível que eu jamais havia visto. Por vezes relacionamentos entre dois autistas, noutras um autistas e um neurotípico, ou com outro transtorno, como bipolaridade, mas sempre relatos muito sinceros e esclarecedores.
Posso citar, os episódios número 47, “Um papo com Mariana Sousa“, o número 55, “Um papo com Jordanna Christina”, o episódio 62, “Um papo com Isabela Rodrigues” e, o mais específico de todos, o número 79, intitulado “Namoro entre autistas“. Todos eles trazem relatos que vão da sexualidade ao afeto e relacionamento envolvendo uma ou mais pessoas com autismo. Prós e contras de se relacionar com autistas ou com neurotípicos, além das dificuldades de socialização são temas abordados por eles no Introvertendo. Afinal, nada melhor que ouvir isso da boca de quem está dentro do espectro.
No episódio chamado de “Solidão” — o de número 38 — eles também falam de um tema ligado ao afeto e relacionamento. “Quando a solitude se torna solidão, a mente pode ser prejudicada. Pensando nisso, decidimos discutir o que é solidão, os fatores que a envolvem, como autistas podem fazer para contorná-la ou até mesmo conviver com ela”, explicam eles. Interessante, inclusive, ouvi-los falar sobre o quão bom pode ser estarem sozinhos em alguns momentos, um benefício do isolamento social em algumas situações. Pais de autistas jovens podem se beneficiar entendendo melhor seus filhos em certos momentos se ouvirem o episódio 38, tenho certeza.
Agora, um episódio que realmente me fez mudar a visão a respeito do afeto e de “como funcionam” alguns autistas por dentro, foi o número 49, “Mães autistas” — e aqui eles usam o conceito correto de mulheres que tem autismo e tiveram filhos; ao contrário de algumas vezes em que vimos o termo usado equivocadamente, principalmente em redes sociais, de mães “de” autistas, se denominando mãe “autista”. Relatos emocionantes e extremamente esclarecedores das mães Yara Delgado (que faz parte do Introvertendo) e as convidadas Geuvana Pedro Nogueira, da Liga dos Autistas. Também participa Graziele Perrella; Elas nos tiram da zona de conforto em seus relatos. É para ouvir e sair transformado no fim do episódio. Eu ouvi duas vezes, pra ser sincero, com alguns dias de diferença para compreender tudo e refletir a respeito.
“Amizade” (número 69), “O problema das fanfics sobre autismo” (81) e “O problema das interações sociais” (episódio 74) também tocam no assunto em muitos momentos. A afetividade entre amigos é bem explorada no primeiro. Se identificar com os outros, interesses intensos e vontade em manter conversas são alguns dos pontos explorados pela galera do Introvertendo no último.
No episódio sobre as fanfics, no entanto, é preciso destacar algumas questões mais, digamos, incomuns. Fanfics — forma reduzida de “fan fiction” — é um termo que, em português, significa literalmente “ficção de fã”. Segundo a Wikipedia o termo é “uma narrativa ficcional, escrita e divulgada por fãs inicialmente em fanzines impressos e posteriormente em blogs, sites e em outras plataformas pertencentes ao ciberespaço, que parte da apropriação de personagens e enredos provenientes de produtos midiáticos como filmes, séries, quadrinhos, videogames etc.
Portanto, pretende construir um universo paralelo ao original e também a ampliar do contato dos fãs com as obras que apreciam para limites mais extensos”. Nesse episódio, eles falam sobre obras em que jovens sem conhecimento técnico e de vivência do autismo escrevem histórias com personagens autistas. Livros que serão lidos por outros milhares de jovens. Um desastre. Pois a discussão do episódio é permeada por fetichização do autismo, sexo com pessoas com deficiência, devotees (atração por pessoa com deficiência) e o interesse desmedido pela vida amorosa de autistas em eventos de autismo.
Discussão pesada. Se você não tem “estômago” para isso, nem comece a ouvir. Mas é também muito reveladora e mostra o quão preconceituosa pode ser uma obra desse tipo e o quanto afeta as pessoas com autismo. Cheguei a duvidar da sanidade mental de quem as escreveu, confesso. Questões que eu jamais havia sequer imaginado, por exemplo, são tratadas de maneira muito desrespeitosa nessas fanfics. Elas são discutidas com muita propriedade pelos podcasters Luca Nolasco e Tiago Abreu, além da convidada Mariana Sousa.
Um dos primeiros episódios, o de número 2, já tocou no tema logo de cara: “Terapia do amor“. Muito bem humorados, eles falam sobre como autistas se relacionam ou flertam nas redes sociais, além de experiências engraçadas dos podcasters com aplicativos como o Tinder e com temas sexuais no geral. As situações e “enrascadas” narradas me fizeram, ao mesmo tempo, rir e aprender sobre o tema. Me colocando no lugar de cada um, puder imaginar as dificuldades (e até mesmo alguns benefícios) de uma pessoa com autismo nessas situações.
Mas se o assunto é sexualidade, não há como deixar de citar quatro episódios emblemáticos a respeito do assunto:
Coragem acho que é a palavra que define tais episódios. Pois neles, os podcasters e convidados se abrem de uma maneira tão corajosa, e nos dão uma aula sobre a sexualidade de muitos autistas com autonomia. É importante nunca generalizar quando falamos de autismo, visto a imensidão do espectro e como o autismo afeta cada indivíduo de uma maneira muito particular e única.
No número 16, um dos assuntos mais pedidos pelas pessoas, segundo o Introvertendo, “um dos temas mais negligenciados pela comunidade científica, a sexualidade dos aspies (termo pelo qual são chamadas as pessoas com diagnóstico da antiga Síndrome de Asperger, que atualmente faz parte do Transtorno do Espectro do Autismo) é um imenso tabu principalmente pelos pais”.
Neste episódio introdutório, eles abordam sua visão sobre o que é sexualidade e sexo, as orientações sexuais de forma básica, a relação da família com a educação sexual e situações de perigo que envolvem sexualidade. Os próprios podcasters definem de maneira muito precisa: “um episódio sério, em parte pesado, mas informativo”.
O episódio sobre adolescência complementa muito bem esta introdução, trazendo relatos não só sobre relacionamentos e desilusões amorosas, mas estudos, relação com os pais, tecnologia e o até o pré-vestibular.
No dedicado à homossexualidade, o Introvertendo fala das tensões históricas em torno do assunto, o porquê esta orientação sexual ainda é um tabu social e o lugar de autistas homossexuais na comunidade do autismo. Pais de autistas que nunca pensaram nesta possibilidade devem se preparar para ouvir este episódio, sem dúvida. Parece ser um tanto contraditório pensar em pais de autistas que possam ter preconceito quanto à orientação sexual diferente da heterossexualidade “padrão” da sociedade. Mas há.
Assim como o autismo faz parte da neurodiversidade, também está incluso na diversidade — onde se encontra a homossexualidade. Ambas minorias que sofrem preconceito de maneira muito semelhante. É um episódio para fazer refletir e, se você se chocar, pause, deixe a ideia maturar em sua mente e volte a ouvir dias depois. Este pode ser um bom conselho. Mas não desista de ouvir até o fim. E, se você tem algum problema com o assunto, aconselho ainda mais afinco para tentar absorver o conteúdo por completo. Será benéfico. Acredite.
O mesmo posso dizer sobre o episódio 35, sobre bissexualidade. Tão revelador e didático quanto. Também muito corajoso e descritivo, nos permite entender muito do modus operandi da mente de muitas pessoas no espectro — bissexuais ou não. Eles inclusive falam sobre preconceitos que rondam esta orientação sexual, tanto por parte de heterossexuais, quanto de homossexuais também.
Em suma, nada como ouvir autistas falando de autismo. Sim, são só uma parte dos autistas. Ainda mais, são só uma parcela dos autistas com autonomia, ou “de alto funcionamento”, mas são uma amostra muito esclarecida falando sobre tão complexos temas. Claro que se formos pensar em sexualidade e afetividade em autistas com maior comprometimento, como os não verbais ou com algum nível de deficiência intelectual, com menos autonomia, talvez seja algo muito mais complexo. Neste caso teríamos que apelar para especialistas e grandes estudiosos do assunto, além de autistas que possam dar seu relato usando de comunicação alternativo, no caso dos não verbais.
Uma verdade pelo menos é incontestável a respeito deste assunto: temos muito o que aprender, principalmente se quisermos colaborar para beneficiar de alguma forma as pessoas com autismo em todo o espectro. Um grande desafio.
Iniciar pelo respeito já é um bom começo!
“O Autismo em Dia não se responsabiliza pelo conteúdo, opiniões e comentários dos frequentadores do portal. O Autismo em Dia repudia qualquer forma de manifestação com conteúdo discriminatório ou preconceituoso.”
Lindo texto! Os episódios do Introvertendo acerca da sexualidade figuram entre meus favoritos, também. Quão positivo é o impacto de ter uma produção nesse nível, com essa abertura, discutindo temas tão pertinentes!
Bonito texto, do ponto de vista não de um autista, mas do pai de um. São lados que precisam dialogar mais…
Oi Caio, concordamos muito contigo e adoramos todo conteúdo do Introvertendo. É valioso conhecer as experiências narradas por diferentes pontos de vista né? É muito bom acompanhar as histórias e ver as famílias a cultivando relações assim, de forma tão franca e honesta.
Obrigado pelas gentis palavras. Também acho que todos os lados do espectro precisam conversar e unirem-se, pois juntos somos inegavelmente muito mais fortes. Obrigado!
[…] Afetividade, sexualidade e autismo […]
Ótima matéria é muito importante as informações para nosso conhecimento.
Não precisa ter um autista na Familia, o importante é o respeito e o conhecimento para não falar o que não sabe.
Ai Rosinete! Que palavras sábias. Se todos pensassem como você a vida dos autistas e familiares seria muito mais leve. Obrigada pela visita, esperamos te ver outras vezes por aqui.
Matéria magnífica. Fases da vida dos autistas que merece atenção maior ainda.
Clélia, adoramos ver você acompanhando nossos posts. Obrigada pelas palavras <3 nos motiva a seguir em frente. Um super abraço de toda equipe =)
Após a leitura desse texto, é sempre importante salientar que pessoas parte do Transtorno do Espectro Autista possuem o direito irrestrito à afetividade e a vivência da própria sexualidade. É um direito humano e universal concedido à todas as pessoas. Em relação aos podcasts citados, do canal Introvertendo, me identifico bastante, pois também tenho um blog onde relato meus pensamentos e experiências sendo parte do espectro autista: https://ousesaberautismo.blogspot.com/
Espero poder ler mais sobre esse assunto tão enriquecedor e necessário.
Obrigada pela contribuição e incentivo Vitor. Acabou de sair um texto que fala mais sobre isso. Esperamos que goste: https://www.autismoemdia.com.br/blog/autismo-relacionamento-amoroso/
É muito importante discutir sobre esse tema, que se encontra invisibilizado.
Concordamos muito com você Erotildes! Estamos aqui para quebrar tabus!
Parabéns pela matéria! Já me inscrevi e comecei a ouvir os podcasts do Introvertendo. Os temas realmente são muito bons!
Obrigada! ?
Eu amei a matéria. Tenho 25 anos e fui diagnosticado há menos de um mês. Estou as coisas não stão fáceis aqui, porém estou correndo atrás do tempo perdido.
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